quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Roxanne

Satine (Nicole Kidman), Moulin Rouge!.
Ela tenta focalizar o seu rosto embriagado no espelho do banheiro do velho puteiro. Ela treme. Se sente enjoada e ofega por ter lutado e corrido para escapar de outro velho repugnante. Seus olhos borrados, o rímel preto escorrendo. Seu batom vermelho espalhado pelo canto esquerdo da sua boca. Quando o vazio de uma vida inteira é preenchido em pouco tempo, as emoções mórbidas se tornam finalmente vivas. E isso a deixa totalmente desestabilizada. Ela não consegue parar de chorar ao lembrar-se dos poucos momentos em que ela se sentiu viva e feliz. Ao lembrar-se dos olhos e do sorriso dele.

O homem gentil e poético conseguiu ler Roxanne nas suas entrecurvas. Caiu de amores por ela e sabia que jamais se sentiria assim novamente. Por ninguém. Ele pedia para que ela acreditasse quando ele falava do seu amor. Roxanne sentia medo, mas, no fundo, sentia que o “Eu te amo tanto...” que saia da boca daquele homem não era o misto fétido casual de álcool e tabaco, depois de ter ido ao céu e voltar para jogar algumas notas nos pés dela. Roxanne sabia que o sentimento sobre o qual ele falava, às vezes cantando, às vezes em versos, arrancando do seu rosto um sorriso raro e verdadeiro, era mais do que uma paixão irracional ou delirante. Ela não conseguia verbalizar, mas sabia que também iria amá-lo até o dia da sua morte. Ele disse que ela não precisa mais se vender, que iriam fugir. Disse iria fazê-la conhecer outras luzes e cores além do monótono vermelho. Ela demorou demais para acreditar. O seu cafetão matou a facadas o amável homem na calçada do prostíbulo.

Era isso que estava fazendo com que ela estivesse andando, nas pontas dos pés, à beira da loucura. São sentimentos com os quais ela não consegue mais lidar. Os flashes da sua vida inteira eclodem subitamente na sua mente e parecem reais demais. A mesma dança intensa freneticamente alternada. A penumbra. Os mesmos toques indiferentes. A penumbra. O mesmo desejo impessoal. Eles a beijam e ela sente o gosto dele. Sente nojo de si mesma. É mais do que ela pode suportar. Roxanne abre o armário do banheiro e coloca na boca todas as cápsulas do seu remédio tarja preta e procura a sua garrafa de whisky para conseguir deglutir tudo de uma vez. Ela se deita no chão frio do banheiro e espera que o seu desespero passe. Mas ela não viu o desespero passar. A única – e última – coisa que ela viu foram os olhos verdes do seu doce homem. E Roxanne sorriu. E o amou até o dia da sua morte.



Inspirado no filme Moulin Rouge!, especialmente na cena El Tango de Roxanne.

sábado, 2 de julho de 2011

Sobre os olhos de um judeu

Ele era bonito e atraente, não para o padrão de beleza habitual, mas era. Era diferente e deve ser por isso que ele não sai da minha cabeça desde a primeira e única vez que o vi.
Não estou dizendo que foi amor à primeira vista. Não. É interesse e atração pelo desconhecido, pelo diferente, como se meu coração quisesse se aventurar e mergulhar em algo incomum.
Sua pele era branca e suave. Contrastava com a camisa azul escura de mangas desajeitadamente dobradas em 3/4 nos seus braços cheios e com a calça igualmente escura e confortavelmente folgada indo terminar de forma graciosa em seus tênis surrados.
Não sei dizer ao certo a sua altura, mas sei, estranhamente, que se eu fosse beijá-lo teria que ficar nas pontas dos dedos dos pés. Não era magro, nem tampouco gordo, ao olhar para seu corpo tive a sensação de que sua dieta judia estava fazendo muito bem para ele. Sim, ele era judeu, posso afirmar isso porque eu vi o seu pequeno kipá* na parte de trás da sua cabeça afilada amassando seus pequenos cachos castanho-avermelhados. Sua mochila preta e estilosa me fez achar que ele vinha da faculdade.
Ele estava sentado num banco do shopping em frente a uma loja de calçados, olhando distraído para algo em suas mãos, não consigo lembrar o que era. Eu estava naquela loja. E quando eu saí de lá, passei por ele e senti seu olhar sobre mim: profundo, observador, interessado, quase como se estivesse pedindo para olhá-lo da mesma maneira.
E aí está o mais atual, constante e agonizante arrependimento da minha vida: eu não olhei para ele.
Não posso descrever o seu rosto, ou pior, não posso descrever os seus olhos. Se eram brilhantes ou opacos, se lá havia brincadeira ou seriedade ou, pelo menos, a cor deles. Ah, como eu me arrependo...
Mas eu peço ao meu D-us*, que é o mesmo dele, que eu possa o reencontrar e ter a segunda chance de olhar nos olhos dele e dizer:
- Tive medo de nunca mais te ver.


Seria a descrição sobre um olhar mais feliz da minha vida.


*Kipá: É um pequeno chapéu em forma de circunferência, utilizada pelos judeus tanto como símbolo da religião como símbolo de "temor a Deus".
*D-us: é uma das formas utilizadas por alguns judeus para se referirem a Deus sem citar seu nome completo, em respeito ao terceiro mandamento recebido, através do qual Deus teria ordenado que seu nome não fosse falado em vão.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Gentleman

Ele veio à Terra, não orgulhou de si mesmo.
Ele ensinou aquilo que há mais de mais precioso para se aprender.
Ele dizia palavras que serviam de refúgio para alguns e de formigueiro para outros.
Ele revolucionou, suas atitudes foram absurdas para alguns.
Ele impressionou, decepcionou quem achava que ia se impressionar.
Ele foi traído por quem dizia que o amava (por mim também, tantas vezes).
Ele chorou, se angustiou, embora muitos tivessem esquecido, ele também era humano.
Ele foi preso e exposto numa cruz, humilhado, por tanto me amar.
Ele levou sobre si o que deveria estar sobre mim como uma nuvem negra, prestes a cair como uma tempestade mortal.
Ele me amou.
Ele amou até a sua última gota de sangue.
E morreu. Mas ele era um cavalheiro, ele tinha palavra, prometeu que ia voltar.
E voltou. Para que eu estivesse aqui, eternamente grata porque sua morte tão amarga me proporciona dias tão doces.


Dedicado ao meu eterno amor: Jesus.